Processamento de Traumas

Como funciona o processamento dos traumas?

Muitas pessoas me perguntam como funciona o processamento de traumas e resolvi escrever este artigo para explicar. Aliás, esse deveria ser o primeiro artigo que alguém vem ao meu blog.

Primeiro você precisa entender como os traumas são gerados

Na origem dos tempos o nosso corpo foi construído para sobreviver, para isso cada vez que passamos por uma situação de perigo, ele gera uma dose extra de energia (sistema nervoso simpático) para podermos lutar ou fugir.   

Assim que o perigo passa, ou por que usamos a energia (para lutar ou fugir) ou por que o nosso corpo entendeu que já estamos em segurança essa energia é descarregada (descarga do sistema nervoso parassimpático). 

Esse é o mecanismo natural e saudável. 

O trauma ocorre quando essa carga de energia ou aconteceu muito cedo na vida, ou foi muito rápida, ou foi muito intensa.

Nesses casos a carga foi maior do que o corpo pode processar e não houve descarga ou ela foi insuficiente e essa energia fica aprisionada no corpo. 

Com o passar do tempo essa energia acumulada pode gerar sintomas como síndrome do pânico, ansiedade, stress, irritação constante, dificuldades para dizer não ou impor limites, tristeza profunda, falta de foco, falta de energia, não conseguir reagir as situações, dores físicas sem explicação médica entre outras coisas.

Como é feito o processamento do trauma

O processamento do trauma ou a renegociação do trauma(termo técnico da psicotraumatologia) é feito de forma a ajudar o corpo a descarregar essa energia sobressalente da maneira adequada. 

Nas sessões, o psicotraumatologista ajuda o paciente a entrar em contato com as emoções acionando no corpo essa energia e usando técnicas específicas que ajudam o corpo a descarregar essas energias através do sistema nervoso parassimpático.  

Esse contato das emoções com o corpo é feito através da atenção em determinados lugares, alternando entre lugares que estão confortáveis, lugares onde as sensações estão desagradáveis e fazendo então movimentos específicos para cada situação particular.

As descargas podem gerar movimentos involuntários como bocejar, lacrimejar, tremores, solturas ou aumento de tonacidade musculares, arrotos e até movimentos intestinais. 

Cada pequena descarga pode representar uma grande diferença no processamento do trauma e deve ser valorizado pelo paciente, tomando um tempo maior de atenção para esses eventos, para que o próprio corpo possa entender e reproduzir essas descargas em outros momentos.

A medida que o trabalho vai sendo feito, existe também um ganho de resiliência que ajuda o paciente a lidar melhor com as próximas situações do dia-a-dia e ter uma vida mais suave, leve, mais equilíbrio e clareza. 

É um trabalho delicado, gentil e suave..

Abuso Sexual na Infância

Um dos grandes problemas do abuso sexual não está exatamente no fato em si, mas nas consequências que isso pode trazer para a vida daquela pessoa. A situação se agrava ainda mais se o fato ocorreu na infância, pois como criança ela não tinha como se defender e não é incomum que a pessoa que deveria defender aquela criança seja o abusador, afetando todo o sistema de vínculos do indivíduo.    Além disso a criança ainda não tem seu sistema nervoso parassimpático completamente formado o que dificulta ainda mais a regulação adequada do sistema.

Selecionei algumas das consequências mais comuns de abuso sexual na infância, vamos entender um pouco mais cada uma dessas consequências e como elas se relacionam com o trauma do abuso sexual:

Ruptura de limites

Acontece especialmente quando o abuso se repetiu várias vezes.  A pessoa com ruptura de limites pode ter dificuldades em dizer não, dificuldades em estabelecer e às vezes até em perceber quais são os limites adequados, se para comportamentos sociais, ou simplesmente para as relações de qualquer tipo amizades, profissional, familiar ou amorosa.

Congelamento

O excesso de carga no sistema nervoso pode gerar um congelamento e a pessoa fica sem ação, ela não consegue reagir em uma situação em que o adequado seria reagir.    E em alguns casos, no dia a dia, a pessoa  pode se sentir congelada para caminhar na vida, para agir.

Dificuldade em ter uma agressividade saudável

Quando a resposta adequada para o corpo seria de se defender e por qualquer motivo, isso não foi possível, então é como se o corpo entendesse que o melhor para se defender é não utilizar a agressividade.  E nesse sentido é importante que a agressividade seja restaurada.  Aqui estamos falando em agressividade saudável, ou seja, aquela que ajuda a pessoa a se defender adequadamente nas situações do dia a dia.

Não acreditar no seu próprio potencial

Como não foi possível se defender, o corpo (e a mente) entendem que não é capaz, não acredita no próprio potencial e isso no inconsciente pode trazer essa sensação de não acreditar que pode para vários outros aspectos da vida.   A pessoa tende a não se sentir capaz para ir atrás dos objetivos, ou para realizar um trabalho. O próprio congelamento em si, que é muito comum em situações de abuso, pode trazer essa sensação de que a pessoa é responsável pelo que aconteceu e acaba se sentido com uma baixa expectativa de autoeficácia.

Relação de prazer e culpa

O abuso sexual pode ter acoplado em si a sensação da violência que aconteceu ao prazer , pois não é incomum que a pessoa por ter tido seus órgãos genitais tocados tenha sentido também prazer.   Isso muitas vezes se confunde dentro da pessoa, como se pelo fato de ter sentido o prazer fosse culpada pela situação.  Isso pode desencadear tanto uma sensação forte de vergonha e culpa atreladas a situação, como também uma repetição de situações onde a culpa é necessária para que se sinta o prazer, buscando por exemplo relações proibidas para conseguir sentir prazer.

Dificuldades em manter relações de confiança

A dificuldade de manter relações de confiança, acontecem principalmente quando ou o abusador era alguém próximo, alguém que deveria ter cuidado da criança, ou quando a criança revelando a situação, por exemplo para a mãe, essa não acredita na criança, não dá o suporte necessário.  Isso muitas vezes é ainda mais prejudicial para a criança do que o abuso em si, visto que internamente ela pode representar isso como um “não tenho ninguém com quem contar”, “ninguém vai me ajudar” e isso pode se entender em diversos aspectos da vida dela.

Entrar repetidamente em situações de abuso

A repetição do trauma é uma forma do sistema de tentar resolver a situação, assim como um disco riscado que continua executando novamente aquela faixa na tentativa de ir para a próxima.  Isso é comum, enquanto a situação não é resolvida internamente a pessoa entrar repetidamente em situações de abuso, na maioria dos casos isso acontece inconscientemente.  Não significa aqui que a pessoa queira repetir o abuso, mas um mecanismo inconsciente de tentar transpor a situação e dessa forma resolvê-la.

Dificuldades em colocar a própria opinião

Outra situação comum é a pessoa, seja pelo próprio congelamento que se torna um vício, seja pela falta de credibilidade em seu próprio potencial, ou seja simplesmente por que ela não se sente com permissão para isso, como se ao tentar falar fosse ser ainda mais castigada, ela acaba desenvolvendo uma dificuldade em colocar a própria opinião.

Crises de Ansiedade e Síndrome de Pânico

Mais um exemplo de consequência que pode ocorrer, pois dependendo da quantidade de carga que o sistema sofreu isso pode desencadear uma síndrome de pânico.  Normalmente atrelada a vários traumas que foram sendo acumulados no sistema nervoso e do qual não foi possível o sistema nervoso processar adequadamente.  Com o acúmulo de carga o próximo caso onde ocorrer uma sobrecarga no sistema pode gerar uma crise de ansiedade.

Bibliografia

Filipas HH, Ullman SE. Child sexual abuse, coping responses, self-blame, posttraumatic stress disorder, and adult sexual revictimization. J Interpers Violence. 2006;21(5):652-672. doi:10.1177/0886260506286879

Wöller W. Traumawiederholung und Reviktimisierung nach körperlicher und sexueller Traumatisierung [Trauma repetition and revictimization following physical and sexual abuse]. Fortschr Neurol Psychiatr. 2005;73(2):83-90. doi:10.1055/s-2004-830055